sábado, 29 de março de 2014

Making me up

Costumavam brincar comigo, dizendo que aquilo não era apenas uma rotina, mas sim um ritual – e eu era a Suma Sacerdotisa, saudando um novo dia em seu templo sagrado. Todos os objetos cuidadosamente dispostos sobre a penteadeira, inclusive o espelho de aumento, amplificando muitas e muitas vezes os detalhes que o tempo esculpiu em meu rosto. Louvo cada pé-de-galinha, cada linha de expressão, por serem lembretes dos anos bem vividos e também dos problemas e dificuldades enfrentados. Sou Gaia, filha do Caos, e também aquela que gerou Cronos.

Com o adstringente, limpo todas as impurezas que se acumulam em cada poro, todos os comentários infelizes e acusações infundadas que são atiradas a todo momento contra mim. Nada disso me pertence mais e a sensação de limpeza renova-me. Sou uma tela em branco, virginal, pronta para me transformar em arte. Sou Perséfone, deusa da primavera, mas também aquela que comunga com o submundo.

Pouco a pouco, as pequenas manchas e máculas são disfarçadas e encobertas. Não o tempo todo e nunca por completo. Sinto uma estranha satisfação em contemplar as assim consideradas “falhas”. Abençoo as minhas imperfeições, abraço a minha mortalidade trágica à busca incessante pela juventude fugaz. Com traços firmes, os olhos são delineados em preto. Preparo-me como uma rainha amazona ante sua próxima batalha. Sou Atena, portadora da égide divina; sou Diana, a donzela caçadora; e também sou Morrigan, a rainha fantasma.

Embora trabalhe com leveza, a mão aplica uma sombra escura sobre as pálpebras. Quero infligir a ira divina no coração dos homens, perturbá-los com o meu olhar incoerente. Carrego os mistérios do oculto, das verdades imutáveis e não-ditas, dos desejos secretos, escondidos sob uma fina camada de pó de estrelas. Sou Nimue, a dama do lago; sou Hécate e sou Ísis, senhoras da magia.

Por fim os lábios, rubros rubros rubros. Enrubescidos como sangue, como fruta madura, como o desejo latente pulsando em cada célula irrequieta. O toque macio da pintura é como a carícia de um amante, deixando a sua marca visível aos olhos do mundo por breves e deliciosos momentos. Sua paixão estampada em mim é tão envolvente quanto os amores de Vênus e tão atemorizante quanto Kali, a destruidora. Porque evoco em mim o que há de encantador e terrível.

Armo-me para enfrentar o mundo diariamente, enfeito os cabelos presos com pedras brilhantes, colorindo o rosto com a minha pintura de guerra. Para me definir, para me agradar, me enamorar. Porque sou mulher e pertenço a mim, somente a mim. E isso me basta.


(Escrito em 26/03/2014 e faz parte da série "coisas estranhas que a senhoura dona jéssica pensa de manhã muito muito cedo".)

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